sábado, 2 de junho de 2007

Arábia pré-islâmica

A Arábia pré-islâmica e o Oriente Próximo nos séculos VI-VII d.C.: rumo a uma nova concepção de mundo

Nos séculos VI-VII d.C., pouco antes do surgimento do Islã, a região chamada de Arábia pelos romanos desde, pelo menos, o início da era cristã (e, depois, pelos bizantinos) era aquela que, para os seus habitantes, os árabes, estava composta de diversas regiões, denominadas através de um sistema de epônimos, que, segundo critérios etno-lingüísticos e relações de parentesco, era usado para referir os territórios dos Banu-Kalb, Banu-Ghassan, Tanukh, Tayyi, Kinda, Himyar, entre outros. Assim, essa antiga “Arábia” dos romanos e bizantinos, que não constituía uma unidade político-nacional ou sócio-econômica para suas próprias populações árabes, equivale à totalidade do que hoje conhecemos por “península arábica”, que se divide em sete países (Arábia Saudita, Kuwait, Bahrein, Qátar, Emirados Árabes Unidos, Omã e Iêmen) ao longo de aproximadamente três milhões de km² cercados por três mares e formados por quatro principais desertos. A leste da península, fica o golfo Pérsico, assim chamado pelos iranianos, que, entre os árabes, recebe o nome de golfo Árabe. A sudeste, temos o oceano Índico, que se divide, ao norte, no mar da Arábia e no golfo de Omã e, ao sul, no golfo de Áden; aqueles banham a costa de Omã e a entrada do golfo Pérsico (até o estreito de Ormuz), enquanto este se estende do litoral do Iêmen e da Somália até o estreito de Bab al-Mandeb na entrada do mar Vermelho, que, localizado a oeste da península, é o seu terceiro e último grande limite marítimo. Os quatro grandes desertos da Arábia são: ao sul, o Rub al-Kháli (“Quarto Vazio”), que, como o nome diz, ocupa a quarta parte de um território extremamente inóspito e desprovido de população permanente; o Nájd, no centro-leste, onde está Riad, a capital da atual Arábia Saudita; ao norte, o Nafud, na divisa com o “Crescente Fértil” (área cultivável em forma de meia-lua do Egito ao Iraque); e, a oeste da península, está o Hijaz, que dá seu nome à região das cidades de Meca e Medina.

Segundo a genealogia árabe pré-islâmica, que remonta à tradição bíblica (Gênesis, X), os árabes seriam descendentes de Sem (daí “semitas”), um dos filhos de Noé, que teriam se dividido em dois grupos principais: o dos “árabes genuínos” (os “kalbitas” ou “iemenitas”), camponeses sedentários do sudoeste da península, cujo epônimo seria o patriarca bíblico Qahtan, descendente direto de Sem; e o dos “árabes arabizados” (os “qaisitas”), habitantes nômades e semi-nômades do centro e norte da Arábia, cujo antepassado seria Adnan, descendente de Ismael, filho de Abraão. A princípio, para nós pareceria uma contradição etno-lingüística e histórica chamar de “árabes arabizados” os protagonistas do processo histórico de expansão do Islã e de “arabização” dos atuais países e populações hoje reconhecidos como “árabes”, e considerar “árabes genuínos” os iemenitas, que quase não participaram desse fenômeno. Na verdade, séculos antes do Islã, alguns árabes meridionais vinham se infiltrando nas regiões central e setentrional da península, cujos descendentes tornaram-se os “árabes arabizados”, ou seja, apenas mais um ramo dessa grande árvore genealógica mítica que teria se distanciado do tronco original comum, o de Sem, de onde viriam seus descendentes diretos, os “árabes genuínos”. A etimologia e o significado da palavra “árabe” também provém dessa genealogia mítica, que a traduz como “nômade” para designar uma mobilidade espacial que era a base de um comércio de longa distância a cargo de beduínos pastores.

Em meados do século VI, o Nájd e o Hijaz, na Arábia central e ocidental, viviam uma fase de decadência sócio-econômica, pois eram apenas pontos de passagem no trajeto das rotas comerciais que conectavam o nordeste da África e o oceano Índico, através do Iêmen e do mar Vermelho, aos territórios dos principais Estados do Oriente Próximo[1], os impérios bizantino e persa sassânida, que ocupavam, respectivamente, sua porção ocidental (Síria-Palestina e Egito) e sua região oriental (Mesopotâmia e Pérsia). Muitos árabes pobres emigravam de Meca para as terras desses impérios, que, a fim de controlarem essa penetração, ampliaram o acordo de proteção militar que mantinham com duas etnias árabes, os ghassânidas e os lakhímidas, habitantes das fronteiras imperiais com a Arábia. Desde o século IV, os sassânidas mantinham com os lakhímidas, árabes cristãos de rito nestoriano (heterodoxia cristã que distinguia duas naturezas em Cristo, a divina e a humana) um pacto de serviços, pelo qual estes garantiam a defesa de suas fronteiras desérticas na baixa Mesopotâmia. A noroeste da Arábia, os ghassânidas, também árabes cristãos, mas de rito monofisista (heterodoxia cristã que defendia a unicidade da natureza divina de Cristo) tinham se tornado, no governo do imperador Justiniano (527-565), uma espécie de Estado-tampão que protegia o território bizantino de invasões.

Entretanto, desde 550-70, os pólos dessa relação desfavorável aos árabes vinham se invertendo, e, até o início do século VII, o Nájd e o Hijaz passariam a ocupar uma posição determinante no comércio de longa distância da península arábica com as regiões vizinhas. Graças às inundações causadas, entre 542 e 570, pela ruptura da represa de Marib no sudoeste da península e, também, devido a guerras travadas entre os reinos da Etiópia e do Iêmen pelo controle das rotas árabe-africanas de especiarias, a cidade de Meca, no Hijaz, passaria a receber fluxos migratórios de iemenitas e outros povos que fugiam dos terrenos alagados de Marib e das guerras com os etíopes. Além desse conflito, em que bizantinos e persas aliaram-se, respectivamente, a etíopes e a iemenitas para influírem nas rotas comerciais árabes, uma nova guerra bizantino-persa por território no Crescente Fértil eclodira em 603. Assim, as rotas comerciais bizantinas até o golfo Pérsico e à Índia desviaram-se para o eixo Síria-Hijaz-Iêmen, e as persas rumaram no sentido Mesopotâmia-Nájd-Hijaz-Iêmen. Meca tornava-se, portanto, no canal direto de comunicação das caravanas comerciais do norte com o sul da Arábia e com os portos africanos do mar Vermelho e do oceano Índico. Bizantinos e persas tentaram tirar proveito econômico dessa nova conjuntura, influindo politicamente na região, novamente através dos ghassânidas e lakhímidas. Porém, não tiveram sucesso, em parte porque o endividamento bizantino com as guerras interrompera o pagamento do soldo aos ghassânidas, que deixaram de atuar como agentes do imperador.

Como vimos, na região de Meca e Medina, no período imediatamente anterior ao Islã, os povos sedentários (agricultores, artesãos e comerciantes) não se consideravam árabes, e nem eram assim chamados por outras comunidades (tanto nômades como sedentárias) da península. De fato, os “árabes”, pouco antes da época de Muhammad e de seus contemporâneos, eram os beduínos nômades, que viviam no deserto e nas periferias dos oásis e cidades. Para eles, os rebanhos e as terras de pastagens eram coletivos, pois não existia propriedade individual do solo. Assim, a unidade social era o grupo, e não o indivíduo. Este tinha direitos e obrigações apenas como membro de uma coletividade organizada em torno de várias famílias, que, através de relações de parentesco, formavam clãs, a fim de unirem-se em torno de um núcleo comum mais amplo, a etnia, o limite do reconhecimento nacional árabe pré-islâmico. O clã e a etnia, como grupos, eram mantidos unidos pela necessidade de autodefesa diante das ameaças da vida no deserto. Sua subsistência dependia da mobilidade de seus rebanhos e das relações comerciais estabelecidas com etnias de outras regiões. Às vezes, porém, tanto os beduínos como os sedentários não conseguiam sobreviver somente de suas atividades pastoris, comerciais ou agrícolas, e recorriam à pilhagem (ghazu) de aldeias, oásis e caravanas comerciais de etnias inimigas para poderem enfrentar, com o botim obtido, períodos de escassez de recursos naturais ou de crises comerciais. Apesar de moldados nesse meio hostil, os árabes pré-islâmicos, especialmente os beduínos, construíram um sistema de valores sociais baseados nas noções de honra, virilidade e generosidade. A honra tratava dos códigos culturais e jurídicos estabelecidos para evitar situações delitivas, como o furto, o homicídio ou a simples calúnia contra a família ou seus indivíduos. Se essas normas fossem rompidas, as sanções poderiam chegar até a pena de morte para o condenado, que geralmente se resolvia pelo pagamento de uma indenização ao ofendido ou à sua família. A virilidade e a generosidade assentavam-se sobre a proteção dos pobres, enfermos, anciãos e órfãos e sobre as virtudes do cavaleiro, que, além de saber montar para lutar e comerciar deveria ser hospitaleiro com os estrangeiros, cortês e culto. Às vezes, o cavaleiro-comerciante também reunia a inspiração da poesia oral, a principal fonte da história árabe pré-islâmica, que, como instrumento ideológico de controle social, exaltava a memória coletiva e ancestral das classes dominantes da etnia.

A ordem social árabe pré-islâmica, especialmente a sedentária, pautava-se pela hierarquização das relações sociais, em que a possibilidade de ascensão social era reduzida para quem não fosse cidadão de plenos direitos, isto é, que não pertencesse à relação “homem-nobre-livre”, superior à da “mulher-plebeu-escravo”. Embora homens e mulheres ocupassem funções sociais bem determinadas, em que não poderiam imiscuir-se nas responsabilidades uns dos outros, as relações patriarcais dominavam sobre as matriarcais. Portanto, ao chefe de família aristocrata (beduíno ou sedentário), era facultado possuir o número de esposas, concubinas e escravos que pudesse manter, na medida em que possuí-los e ostentá-los era sinal de riqueza pessoal e da etnia, requisitos para ser considerado “nobre” e, pois, cidadão pleno. Ao falarmos de escravismo nas sociedades árabes pré-islâmicas, devemos abandonar a idéia de que esse fosse um elemento preponderante das relações sociais de produção. O escravo, enquanto propriedade de seu senhor e força de trabalho doméstica e urbana, era uma forma secundária de exploração do excedente econômico, que se realizava principalmente pela taxação das relações comerciais. As atividades femininas restringiam-se ao ambiente doméstico, onde as mulheres, além de educarem os filhos e zelarem pela honra familiar, cultivavam lavouras e cuidavam dos rebanhos coletivos. Algumas também trabalhavam como pequenas comerciantes e artesãs locais, mas o comércio de longa distância das caravanas deve ter sido uma atividade quase exclusivamente masculina. A poligamia praticada pelos árabes pré-islâmicos atendia a um objetivo de autoproteção social contra a desagregação familiar e do grupo e também a um fim comercial. Diante dos riscos assumidos (morte, seqüestro, desaparecimento ou até fuga) com a participação masculina nas expedições comerciais, era dever do clã e da etnia cuidar da viúva, da mulher abandonada e de seus órfãos. Assim, permitia-se que outro homem (às vezes um parente) a desposasse e adotasse seus filhos. Por outro lado, a poligamia também possuía uma função econômica muito lucrativa, que aumentava o patrimônio e o prestígio individual e do clã, como no caso de mulheres de etnias inimigas cativas de guerra ou seqüestradas que eram vendidas nos mercados. Em épocas de crises econômicas, aliadas a altas taxas de natalidade feminina numa mesma família ou clã, era permitida a prática do infanticídio de algumas meninas.

Uma das poucas exceções à vida nômade era a formação de pequenas comunidades sedentárias em oásis ou cidades, como era o caso de Meca. Os beduínos nômades, enquanto pastores e comerciantes, constituíam um dos pólos (o do “mercador-guerreiro”) desse comércio itinerante de longa distância, levando e trazendo produtos para comprar e vender nas feiras e mercados urbanos, onde o segundo pólo dessa relação, o dos mercadores locais, predominava sobre a vida econômica e social sedentária dos grupos de camponeses e artesãos. Essa forma de organização e dominação das relações sociais de produção pelos comerciantes locais aristocratas dava-se através da extração do excedente econômico por meio da tributação da produção em forma de moeda, e não pela entrega de uma parte de tudo aquilo que se produzisse em sociedade (não se constituindo o modo de produção tributário árabe pré-islâmico num tipo de feudalismo europeu, como alguns estudos já afirmaram). Assim, para que essa relação sócio-econômica pudesse se justificar e perdurar, os senhores (sayyid) do comércio precisavam deter também o controle das relações de poder político e ideológico. A vida social e jurídica do clã ou da etnia, enquanto grupo, era regulada pelo costume, a “Sunnah” dos ancestrais, com base num precedente aceito como consenso geral e sancionado pela opinião pública. A fim de adotar-se uma decisão a respeito de disputas coletivas ou individuais, os chefes de cada família e clã eram indicados pelos seus membros para representá-los diante do conselho de anciãos (majlis), órgão deliberativo da etnia, cujas funções eram de natureza legislativa e jurisdicional. Porém, é claro que essa aristocracia comerciante impunha muitas vezes sua opinião e decidia as principais questões de seu interesse com base numa solidariedade de classe fundada na riqueza, na experiência comercial e no pertencimento aos clãs tidos como “superiores”.

Até inícios do século VII, os árabes do sul da península (sedentários na sua maioria) adoravam deuses e deusas que personificavam os planetas e aos quais consagravam templos e santuários controlados por sacerdotes que administravam as oferendas dadas às divindades. Nessa mesma época, os árabes beduínos do norte e do centro da Arábia não se preocupavam muito com rituais religiosos elaborados. Apenas acreditavam que a terra era habitada por espíritos invisíveis, os “jinns”, presentes nos elementos da natureza, como em árvores, fontes de água e pedras sagradas. Os “jinns”, devido às suas capacidades mágicas, eram tidos como responsáveis por acontecimentos milagrosos ou incomuns e por doenças, cujas causas popularmente acreditava-se ser o desequilíbrio entre o “jinn” interno e o externo de cada indivíduo, o que refletiria uma espécie de relação maniqueísta de separar o “bem” do “mal”. Já as populações sedentarizadas dos oásis praticavam uma religião politeísta através da veneração a vários deuses. Cada clã ou etnia possuía um ou mais deuses que poderiam ou não ter um correspondente nos demais grupos. Na região de Meca, as principais deusas eram Manat, Uzzah e al-Lat, adoradas através de estátuas de cerâmica de formato totêmico e antropomórfico, e filhas de Allah, um deus hierarquicamente superior aos demais, o que refletiria talvez o surgimento de um monoteísmo rudimentar pouco antes do início da era islâmica. Meca possuía um importante santuário, a Kaaba, local de peregrinação que abrigava a Pedra Preta (um meteorito) e mais de trezentas divindades de toda a Arábia. Assim, o clã dos Quraish, a elite aristocrática comerciante de Meca, respaldada pelo corpo de sacerdotes, controlava o uso ideológico dos rituais religiosos, organizando várias feiras ao longo do ano, a fim de atrair à região etnias de toda a península, e mesmo de fora dela, como forma de congregar as diversas rotas comerciais para um só local, onde supostamente haveria uma liberdade de culto e adoração de todas as divindades. Para entrar e negociar em Meca, ou simplesmente passar pelo seu território, cobravam-se impostos sobre o comércio e taxas alfandegárias. Além dos ritos politeístas, Meca e outras regiões da Arábia abrigavam comunidades de judeus e cristãos, formadas principalmente de camponeses e artesãos, que, especula-se, devem ter tido alguma influência sobre o incipiente monoteísmo árabe e as próprias origens e códigos do Islã.

Em fins do século VI, as formações sociais do Oriente Próximo encontravam-se em vias de transformação. Na Arábia, um mundo menos isolado do que se imaginava, as relações econômicas e de poder apontavam para tendências de unidade político-econômica e social, que Muhammad e seus partidários, ao abraçarem o Islã, tornariam numa nova realidade, cujas irreversíveis conseqüências refletiriam no legado histórico de toda a região e além.



[1] Denominação já usada por gregos e romanos, e corrente até a segunda guerra mundial, para referir a região asiática que vai do mar Mediterrâneo ao golfo Pérsico.


Adaptação de artigo publicado na revista "História Viva"- edição especial "Grandes Religiões n. 4: Islamismo", maio de 2007.

Um comentário:

Sérgio Inglez de Sousa disse...

TODOS OS ARTIGOS SÃO EXCELENTES!COMO NO MOMENTO PESQUISO OMÃ,PRECISO DE INDICAÇÕES DE MATERIAL CONCERNENTE A POPULAÇÕES DE PESCADORES NA REGIÃO DE SOHAR E LIWA, NO TEMPO PRESENTE. SERÁ QUE VC PODE AJUDAR?
CASO SEJA POSSÍVEL, FAVOR SUGERIR SITES OU BLOGS PARA O E-MAIL DE rosiekiehl@hotmail
OBRIDADA
ROSIE