sábado, 2 de junho de 2007

Expansão islâmica

A Expansão Islâmica (séculos VII-XII): da Jihad à “Guerra Santa”

Atualmente, a maioria dos estudos históricos sobre a expansão islâmica e suas principais razões para a conquista de novos territórios e a conversão de fiéis, já abandonou antigas interpretações que, dominantes até meados do século XX, viam nesse processo a preponderância de guerras extremamente violentas, cujas principais motivações seriam religiosas. Hoje, sabemos que a rápida expansão e as conversões islâmicas fora da península arábica aconteceram, entre os séculos VII e XII, sobretudo pela celebração de acordos políticos e econômicos com os líderes das regiões conquistadas, que traziam vantagens político-econômicas e benefícios sociais concretos aos conversos. Isso não significa dizer que o Islã expansionista não tenha travado importantes batalhas de conquista que deixaram mortos e feridos. Porém, essas não foram guerras prolongadas, em que os exércitos muçulmanos tenham massacrado e expulsado populações civis das terras conquistadas, conforme era amplamente difundido por algumas teses orientalistas e eurocêntricas dos séculos XIX e XX, que moldaram o imaginário ocidental sobre o guerreiro árabe-muçulmano fanático com o Alcorão (o livro sagrado do Islã) na mão direita e, na esquerda, a cimitarra de fio longo, largo e curvilíneo. Essa visão está eivada de tamanho preconceito e desconhecimento sobre o tema que, inclusive após as batalhas, o Islã vencedor propunha um acordo de capitulação às tropas derrotadas, segundo o qual os prisioneiros de guerra convertidos recuperariam sua liberdade e se tornariam cidadãos do império árabe-islâmico.

Sobre as causas da expansão muçulmana também se especulou (e se errou) muito. Era lugar-comum atribuir-lhe motivações quase exclusivamente religiosas, que atestariam o caráter fervoroso e intolerante do Islã. Isso tanto não é verdade que, com as conquistas, o Islã permitiria a permanência de comunidades de judeus, cristãos, zoroastros e, depois, de alguns hindus e budistas. Considerados “povos do livro” (a Bíblia), pois adeptos do monoteísmo em alguma medida, eles tornaram-se os dhimmis (protegidos), cidadãos do Estado islâmico com prerrogativas particulares, como a permissão de manterem seus cultos e direito privado mediante o pagamento de tributos especiais. Assim, hoje é primordial entender a expansão através de seus fatores políticos, econômicos e sociais. Ao surgir, o Islã superou o viés meramente religioso-ideológico, e se constituiu mais como um novo pacto social proposto aos povos beduínos e sedentários da Arábia do que somente como uma nova religião de rituais e preceitos especiais. Como valor filosófico e metafísico, o Islã foi o instrumento para a concepção de um novo paradigma, pacificador e unificador, de etnias até então inimigas, mas cujos objetivos principais e últimos eram a construção de um corpo sócio-jurídico e um projeto político-econômico transformadores e mais abrangentes do que o elemento religioso. Assim, criou-se o conceito do jihad como o principal caminho até esse novo estado de coisas, tanto através da convicção individual de cada novo converso ao Islã como uma forma de justificar e incentivar a expansão e as conquistas islâmicas (ver quadro).

Como parte de um projeto político maior, o êxito das campanhas islâmicas nos séculos VII-VIII também está dado pela fraqueza dos adversários quando, logo após a morte do profeta Muhammad em 632, o Islã sairia da Arábia. Antes do surgimento do Islã em 610 e da unificação da península arábica até 634, os árabes conheciam o estado de penúria tanto das populações das províncias como das tropas militares dos impérios bizantino e persa sassânida após quase um século de guerras. Os súditos bizantinos e persas das províncias semitas e arabizadas do Crescente Fértil estavam profundamente insatisfeitos com a destruição de suas regiões, com as pesadas contribuições fiscais que pagavam para sustentar os conflitos e também com os cortes orçamentários de suas províncias. Já os ghassânidas e os lakhímidas, estados-vassalos árabes que defendiam, respectivamente, as fronteiras bizantinas e persas contra a Arábia, estavam sem receber o pagamento de seus soldos, o que prejudicou a manutenção da aliança. Assim, ao concluírem a unificação muçulmana da península, os árabes estabeleceram com ghassânidas e lakhímidas acordos de entrada na região, que, inicialmente, não receberam muita atenção de bizantinos e persas, pois pensavam ser mais uma incursão árabe de rotina. Ao perceberem que a ameaça era real e definitiva, os impérios enviaram mais tropas, mas já era tarde demais. O chamado “poder do deserto” das tropas árabe-muçulmanas, que as tornara exímias combatentes nesse terreno, aliado ao conhecimento de ghassânidas e lakhímidas sobre as melhores rotas e esconderijos seriam decisivos nessa primeira fase da expansão islâmica fora da Arábia (633-648), que resultou na conquista dos territórios persas e bizantinos do Crescente Fértil e das montanhas do Cáucaso.

A concepção econômica explica-se tanto pela promessa islâmica de amealhar botins muito lucrativos das regiões porventura submetidas como pela oportunidade que os muçulmanos da península agora tinham de conquistar novos territórios para satisfazer suas necessidades materiais por recursos naturais e produtos comerciais fora de uma região freqüentemente sujeita a períodos de escassez e crises. Assim, se fora edificado um novo sistema político-jurídico que proibira os velhos ataques de pilhagem do período pré-islâmico entre as etnias árabes – que, em nome de um valor maior, o Islã, agora constituíam um fato nacional coeso, o da comunidade ou nação islâmica (“ummah”) –, era evidente que, pelo menos em curto prazo, a nova ordem social islâmica não conseguiria cumprir a promessa de proporcionar um tratamento sócio-econômico plenamente igualitário (ou, no mínimo, redistributivo da riqueza), especialmente quando as instituições muçulmanas recém estavam sendo fundadas e consolidadas. Assim, a expansão para além do território árabe original fez-se imperiosa e colocaria, antes do fim do século VII, o controle das principais rotas comercias de longa distância de Oriente a Ocidente sob um único poder centralizado, o dos califados islâmicos.

Como vimos, após a morte de Muhammad em 632, a chamada primeira fase da expansão islâmica levara à derrota final de bizantinos e persas e, pois, à conquista islâmica da Pérsia, Iraque, Síria-Palestina, Egito e Armênia. Algumas batalhas memoráveis, como as de Qadissía e Yarmuk, foram decisivas para a instalação do Islã, respectivamente, na Pérsia e na Síria-Palestina. Essa etapa fora realizada pelos governos dos chamados “califas perfeitos” (632-660), quando ainda não ocorrera a guerra civil islâmica (656-661) que causaria a primeira cisão (fitnah) do Islã entre sunitas e xiitas. A ortodoxia sunita saiu vencedora desse embate, e a capital islâmica foi transferida de Medina para Damasco, que se tornou a sede do califado omíada, denominação da nova dinastia fundada por Muáuyia I (661-680).

Interrompida de 650 a 660, a expansão islâmica entraria na segunda etapa em 680, quando os omíadas retomariam o avanço rumo ao norte da África e ao Ocidente muçulmano, o Maghrib (atuais Argélia e Marrocos), para daí cruzarem o estreito de Gibraltar (do árabe “Jábal al-Táriq”, ou “montanha de Táriq”, em homenagem ao general bérbere que o conquistou) em direção à península ibérica, que seria arrebatada ao reino visigodo entre 711 e 716 e se tornaria a província omíada de Al-Andalus com capital em Córdoba. Rumo ao Oriente (o Mashriq islâmico), as conquistas omíadas na Ásia Central ocorreram de 694 a 714 nas regiões do Khurassan, Khuarizm e Transoxiana (atuais Afeganistão, Turcomenistão e Uzbequistão). Assim, essas duas primeiras fases da expansão islâmica (633-648 e 680-714) são a base da constituição dos chamados “territórios islâmicos clássicos”, cujas fronteiras não se alterariam muito até inícios do século XII. Os séculos VII e VIII também foram o período da consolidação do elemento étnico-cultural árabe, isto é, embora o Islã estivesse dirigido a todos os povos conquistados sem distinção de etnia ou classe social, a origem árabe manteve uma hegemonia sobre as nações dos fiéis recém conversos e em vias de islamização, especialmente os bérberes, persas e khurassanitas. Estes constituíam um grupo sócio-econômico marginalizado, pois eram penalizados pela tributação excessiva de alguns impostos, além de serem preteridos nas posições de mando do comércio e da agricultura e nos altos cargos públicos. Esse foi o principal motivo para a revolução abássida, cuja vitoriosa coalizão entre um familiar distante do profeta Muhammad, Al-Abbas, os conversos (mawali) discriminados e os xiitas minoritários e perseguidos, deporia, em 750, o califado omíada de Damasco em nome do Islã e contra a supremacia árabe.

Abd al-Rahman I, sobrevivente dos omíadas destituídos foge de Damasco para Al-Andalus, onde, em 756, aliado à oposição local, derruba o governo provincial representante dos abássidas e funda o emirado (principado) de Córdoba, também como uma forma de trazer ordem à província que recém saía de um período de revoltas bérberes contra os privilégios econômicos e sociais da elite árabe e de conflitos entre partidos inimigos pelo poder. Devido a sua recente formação, não era seguro o emirado declarar a emancipação total dos abássidas e arriscar-se a sofrer uma intervenção num momento de fraqueza político-militar. Assim, embora o emirado se dissesse formalmente parte do califado, ele obteria uma ampla autonomia e seria administrado como se outro reino fosse. A fundação de Al-Andalus levou os muçulmanos a ocuparem, no século VIII, mais de dois terços (75%) da península ibérica e a cruzarem os Pirineus rumo à França dos carolíngios, de onde retrocederam após perderem a batalha de Poitiers (732). Entretanto, no início do século IX, o Islã começara a enfrentar os avanços dos reinos cristãos de Astúrias e Navarra no noroeste da península e dos francos em Barcelona, regiões de refúgio da aristocracia visigoda. Assim, constituiu-se a “Marca Hispânica”, uma região de fronteira entre o Islã andaluz e os reinos católicos, que ocupava um largo território quase vazio de população, onde tropas estacionadas resguardavam ambas frentes de batalha. O governo de Abd al-Rahman II (822-852) organizou o Estado conforme o modelo abássida de autoridade total do soberano, administração centralizada, burocrática e hierarquizada, sob a direção do hájib, chefe de governo equivalente ao vizir abássida. Assim, houve paz interna, apesar das escaramuças com os reinos cristãos, a economia era próspera e a corte vivia na opulência e cercada de sábios, poetas e filósofos.

Após a revolução abássida de 750, as reivindicações dos “mawali” por um tratamento social mais justo e igualitário, ou seja, verdadeiramente islâmico, seriam parcial e temporariamente atendidas. O centralismo político e a unificação econômica do califado, cuja capital agora era Bagdá, perduraria, dependendo da região, até 900 ou 950. A dinastia abássida manteria a maioria das conquistas islâmicas dos omíadas, exceto pelas perdas territoriais que sofreria para os bizantinos na Anatólia, no Cáucaso armênio e no Mediterrâneo (ilhas de Chipre e Creta), mas avançaria na planície do rio Indo (atuais Afeganistão e Paquistão), no extremo sul da Itália (Calábria e Puglia) e nas ilhas mediterrâneas da Sardenha, Sicília e Malta. O período de unidade e apogeu abássida (750-900/50) caracterizou-se também pela “orientalização” do Islã, quando as elites persas, khurassanitas e centro-asiáticas desempenhariam um papel fundamental nos governos das províncias islâmicas orientais, onde controlariam a produção agrícola e organizariam as caravanas comerciais de longa distância, ligando a China ao Maghrib e à Europa. Porém, quando eclodiam crises econômicas e políticas no centro do califado, como a revolta dos “zanj” (escravos na agricultura do baixo Iraque), as comunidades rurais das províncias abássidas orientais tinham de contribuir com a maior parte da extração do excedente econômico através de uma pesada tributação de sua produção, enquanto as atividades comerciais e urbanas e a aristocracia de Bagdá e Damasco desfrutavam de vantagens políticas e econômicas. Assim, por volta do ano 900, a fim de atender algumas reivindicações e debelar revoltas contra os representantes do poder califal nas províncias orientais, os abássidas lhes concederiam maior autonomia. No entanto, diante de revoltas cada vez mais violentas e numerosas, os abássidas assistiriam a um processo de separatismo provincial iniciado no Oriente, que se alastraria por todo seu território.

Até meados do século X, a irreversível fragmentação abássida resultaria na formação de dois importantes califados. No Maghrib, diante das ameaças dos reinos cristãos do norte e, sobretudo, das ambições fatímidas ao sul, Abd al-Rahman III (912-961) declararia a fundação do califado omíada de Córdoba em 929. No Mashriq, sob a área direta de influência de Bagdá, surgiria, a partir de uma doutrina minoritária originária da Ifríqiya (atual Tunísia), o califado fatímida do Cairo que, fundado em 969, seria a primeira formação social islâmica xiita. Com o califado omíada de Córdoba, a sobrevivência do sunismo estava assegurada e, agora sim, a completa independência de Al-Andalus do califado abássida fora formalizada. O apogeu de Al-Andalus ocorreu no reinado do fundador do califado, que reforçou sua autoridade e prestígio ao recuperar parte dos territórios tomados pelos cristãos e ao fazer de Córdoba o maior centro intelectual e artístico do Ocidente. Durante o período do califado omíada de Córdoba (929-1031), a expansão islâmica avançou, e partes do território da Marca Hispânica foram reconquistadas. Consciente do perigo representado pelos fatímidas xiitas, Abd al-Rahman III enviou reforços à África para formar aí uma área defensiva dos povos bérberes, uma vez que agora o Maghrib africano também formava parte do califado de Al-Andalus. Entre 975 e 1031, ano da extinção do califado de Córdoba, ainda é importante referir a conquista islâmica de Santiago de Compostela em 997.

Fatímidas e omíadas andaluzes buscaram, no século X, obter o domínio absoluto sobre o Maghrib e o norte da África. Mas, com a fundação do califado fatímida do Cairo em 969, as fronteiras ficaram estabelecidas na região da Ifríquia. O Egito experimentou um grande impulso político, comercial e intelectual sob os fatímidas, que se expandiriam até a Síria-Palestina. Aí, lutariam contra os cruzados de 1095 a 1171, quando, enfraquecidos, seriam depostos pelos curdos sunitas de Salah al-Din Al-Ayub (Saladino), os aiúbidas.


Jihad x Guerra Santa: um antigo mal-entendido


Apesar de não conter no seu núcleo semântico a noção de “guerra”, a palavra árabe jihad é quase sempre traduzida e alardeada como “guerra santa” pelo discurso dominante – e ignorante – a respeito dos conceitos e da história do Islã, o que empobrece o debate sobre a compreensão de seu primordial significado, sobretudo no período do Islã clássico (séculos VII-XIII). Na verdade, jihad expressa a idéia geral de “esforço” em conhecer e entender os princípios do Islã, a fim de aceitá-los e praticá-los de forma individual e coletiva. Individualmente, esse “jihad-esforço” atuaria tanto sobre o foro íntimo do converso, através de uma reflexão moral e espiritual para uma compreensão e aceitação conscientes do Islã, como em termos físicos e estéticos. Assim, esse momento de introspecção pessoal ocorreria por meio do estudo dos preceitos e práticas sociais islâmicos sobre determinado tema e, também, através da oração e culto a Allah. Física e esteticamente, o converso ao Islã deveria preparar seu corpo e mente, além de, na sua vida prática cotidiana, agir para alcançar seus objetivos pessoais e realizar-se como indivíduo em harmonia com os valores muçulmanos e da comunidade (islâmica ou não) em que vivesse.

Já o “jihad-esforço” coletivo de propagação do Islã e de realização social de seus preceitos seria de duas formas: o discurso (falado ou escrito) e a ação social. Aqui, como no “jihad-esforço” individual, o conhecimento e a educação prévios são prioridades na difusão do ideal islâmico. Nesse sentido, o “jihad-esforço” coletivo poderia expandir o Islã entre populações não-muçulmanas, a fim de convertê-las através de um discurso proselitista de ensinamento ou doutrinação, ou pela celebração de acordos político-econômicos e pactos sociais, em que o fato de abraçar o Islã trouxesse benefícios, especialmente materiais, aos conversos, cuja conversão ocorreria mais por interesse do que por convicção. Já nas sociedades islâmicas, o discurso e as ações sociais poderiam agir na assistência material, espiritual e/ou terapêutica de pobres e necessitados em geral, como órfãos, idosos e deficientes físicos e mentais. Mas, também seria possível praticar o “jihad-esforço” coletivo através de um discurso e de ações sociais concretas que legitimassem certa ordem político-social muçulmana, ou, por outro lado, que a contestassem e propusessem sua reforma ou destruição por considerá-la opressiva ou ilegítima em relação ao que deva ser o verdadeiro Islã para os grupos oposicionistas.

A “guerra santa”, esta sim de caráter violento e armado, seria de defesa ou de ataque. Esta espécie de jihad, que não se confunde com a anterior, dizia respeito à luta armada contra os inimigos do Islã ou uma sociedade muçulmana rival, ou até contra a própria ordem islâmica instituída. A guerra santa de ataque ou defesa era o único combate permitido pela lei islâmica, que a mantinha sob estrito controle. Ela deveria ser precedida de um chamamento de adesão ao Islã ou de um tratado de paz, a fim de tentar evitar o conflito, que, mesmo deflagrado, era conclamado publicamente e declarado pela autoridade competente, mas sem atacar nem envolver pessoas que não fossem combatentes. A comunidade islâmica atacada ou invadida buscaria formas de se defender, geralmente através de um contra-ataque. Por outro lado, a guerra santa de ataque seria declarada como última e extrema opção diante do fracasso de uma política de entendimento ou aceitação do Islã por meio do “jihad-esforço”. Assim, a guerra santa de ataque teve, sobretudo no período que é objeto deste estudo (o Islã “clássico”), essa natureza secundária e residual, segundo a qual, quando o Islã não se fazia compreender e aceitar através do “jihad-esforço”, esta modalidade seria a alternativa para a expansão, conquista e conversão islâmicas.

A partir do século XII, as Cruzadas (a “guerra santa” católica) dominariam um cenário sangrento, do qual talvez cristãos e muçulmanos jamais tenham podido se recuperar. O “jihad-esforço” já não jogaria o papel principal na expansão e nas futuras conquistas do Islã. De fato, tanto nessa época como hoje, parece que o “jihad-esforço” perdeu a batalha para a enganosa “guerra santa”, cuja única real santidade descansa na memória dos que abateu e dos que ainda abate.


Adaptação de artigo publicado na revista "História Viva"- edição especial "Grandes Religiões n. 4: Islamismo", maio de 2007.


Arábia pré-islâmica

A Arábia pré-islâmica e o Oriente Próximo nos séculos VI-VII d.C.: rumo a uma nova concepção de mundo

Nos séculos VI-VII d.C., pouco antes do surgimento do Islã, a região chamada de Arábia pelos romanos desde, pelo menos, o início da era cristã (e, depois, pelos bizantinos) era aquela que, para os seus habitantes, os árabes, estava composta de diversas regiões, denominadas através de um sistema de epônimos, que, segundo critérios etno-lingüísticos e relações de parentesco, era usado para referir os territórios dos Banu-Kalb, Banu-Ghassan, Tanukh, Tayyi, Kinda, Himyar, entre outros. Assim, essa antiga “Arábia” dos romanos e bizantinos, que não constituía uma unidade político-nacional ou sócio-econômica para suas próprias populações árabes, equivale à totalidade do que hoje conhecemos por “península arábica”, que se divide em sete países (Arábia Saudita, Kuwait, Bahrein, Qátar, Emirados Árabes Unidos, Omã e Iêmen) ao longo de aproximadamente três milhões de km² cercados por três mares e formados por quatro principais desertos. A leste da península, fica o golfo Pérsico, assim chamado pelos iranianos, que, entre os árabes, recebe o nome de golfo Árabe. A sudeste, temos o oceano Índico, que se divide, ao norte, no mar da Arábia e no golfo de Omã e, ao sul, no golfo de Áden; aqueles banham a costa de Omã e a entrada do golfo Pérsico (até o estreito de Ormuz), enquanto este se estende do litoral do Iêmen e da Somália até o estreito de Bab al-Mandeb na entrada do mar Vermelho, que, localizado a oeste da península, é o seu terceiro e último grande limite marítimo. Os quatro grandes desertos da Arábia são: ao sul, o Rub al-Kháli (“Quarto Vazio”), que, como o nome diz, ocupa a quarta parte de um território extremamente inóspito e desprovido de população permanente; o Nájd, no centro-leste, onde está Riad, a capital da atual Arábia Saudita; ao norte, o Nafud, na divisa com o “Crescente Fértil” (área cultivável em forma de meia-lua do Egito ao Iraque); e, a oeste da península, está o Hijaz, que dá seu nome à região das cidades de Meca e Medina.

Segundo a genealogia árabe pré-islâmica, que remonta à tradição bíblica (Gênesis, X), os árabes seriam descendentes de Sem (daí “semitas”), um dos filhos de Noé, que teriam se dividido em dois grupos principais: o dos “árabes genuínos” (os “kalbitas” ou “iemenitas”), camponeses sedentários do sudoeste da península, cujo epônimo seria o patriarca bíblico Qahtan, descendente direto de Sem; e o dos “árabes arabizados” (os “qaisitas”), habitantes nômades e semi-nômades do centro e norte da Arábia, cujo antepassado seria Adnan, descendente de Ismael, filho de Abraão. A princípio, para nós pareceria uma contradição etno-lingüística e histórica chamar de “árabes arabizados” os protagonistas do processo histórico de expansão do Islã e de “arabização” dos atuais países e populações hoje reconhecidos como “árabes”, e considerar “árabes genuínos” os iemenitas, que quase não participaram desse fenômeno. Na verdade, séculos antes do Islã, alguns árabes meridionais vinham se infiltrando nas regiões central e setentrional da península, cujos descendentes tornaram-se os “árabes arabizados”, ou seja, apenas mais um ramo dessa grande árvore genealógica mítica que teria se distanciado do tronco original comum, o de Sem, de onde viriam seus descendentes diretos, os “árabes genuínos”. A etimologia e o significado da palavra “árabe” também provém dessa genealogia mítica, que a traduz como “nômade” para designar uma mobilidade espacial que era a base de um comércio de longa distância a cargo de beduínos pastores.

Em meados do século VI, o Nájd e o Hijaz, na Arábia central e ocidental, viviam uma fase de decadência sócio-econômica, pois eram apenas pontos de passagem no trajeto das rotas comerciais que conectavam o nordeste da África e o oceano Índico, através do Iêmen e do mar Vermelho, aos territórios dos principais Estados do Oriente Próximo[1], os impérios bizantino e persa sassânida, que ocupavam, respectivamente, sua porção ocidental (Síria-Palestina e Egito) e sua região oriental (Mesopotâmia e Pérsia). Muitos árabes pobres emigravam de Meca para as terras desses impérios, que, a fim de controlarem essa penetração, ampliaram o acordo de proteção militar que mantinham com duas etnias árabes, os ghassânidas e os lakhímidas, habitantes das fronteiras imperiais com a Arábia. Desde o século IV, os sassânidas mantinham com os lakhímidas, árabes cristãos de rito nestoriano (heterodoxia cristã que distinguia duas naturezas em Cristo, a divina e a humana) um pacto de serviços, pelo qual estes garantiam a defesa de suas fronteiras desérticas na baixa Mesopotâmia. A noroeste da Arábia, os ghassânidas, também árabes cristãos, mas de rito monofisista (heterodoxia cristã que defendia a unicidade da natureza divina de Cristo) tinham se tornado, no governo do imperador Justiniano (527-565), uma espécie de Estado-tampão que protegia o território bizantino de invasões.

Entretanto, desde 550-70, os pólos dessa relação desfavorável aos árabes vinham se invertendo, e, até o início do século VII, o Nájd e o Hijaz passariam a ocupar uma posição determinante no comércio de longa distância da península arábica com as regiões vizinhas. Graças às inundações causadas, entre 542 e 570, pela ruptura da represa de Marib no sudoeste da península e, também, devido a guerras travadas entre os reinos da Etiópia e do Iêmen pelo controle das rotas árabe-africanas de especiarias, a cidade de Meca, no Hijaz, passaria a receber fluxos migratórios de iemenitas e outros povos que fugiam dos terrenos alagados de Marib e das guerras com os etíopes. Além desse conflito, em que bizantinos e persas aliaram-se, respectivamente, a etíopes e a iemenitas para influírem nas rotas comerciais árabes, uma nova guerra bizantino-persa por território no Crescente Fértil eclodira em 603. Assim, as rotas comerciais bizantinas até o golfo Pérsico e à Índia desviaram-se para o eixo Síria-Hijaz-Iêmen, e as persas rumaram no sentido Mesopotâmia-Nájd-Hijaz-Iêmen. Meca tornava-se, portanto, no canal direto de comunicação das caravanas comerciais do norte com o sul da Arábia e com os portos africanos do mar Vermelho e do oceano Índico. Bizantinos e persas tentaram tirar proveito econômico dessa nova conjuntura, influindo politicamente na região, novamente através dos ghassânidas e lakhímidas. Porém, não tiveram sucesso, em parte porque o endividamento bizantino com as guerras interrompera o pagamento do soldo aos ghassânidas, que deixaram de atuar como agentes do imperador.

Como vimos, na região de Meca e Medina, no período imediatamente anterior ao Islã, os povos sedentários (agricultores, artesãos e comerciantes) não se consideravam árabes, e nem eram assim chamados por outras comunidades (tanto nômades como sedentárias) da península. De fato, os “árabes”, pouco antes da época de Muhammad e de seus contemporâneos, eram os beduínos nômades, que viviam no deserto e nas periferias dos oásis e cidades. Para eles, os rebanhos e as terras de pastagens eram coletivos, pois não existia propriedade individual do solo. Assim, a unidade social era o grupo, e não o indivíduo. Este tinha direitos e obrigações apenas como membro de uma coletividade organizada em torno de várias famílias, que, através de relações de parentesco, formavam clãs, a fim de unirem-se em torno de um núcleo comum mais amplo, a etnia, o limite do reconhecimento nacional árabe pré-islâmico. O clã e a etnia, como grupos, eram mantidos unidos pela necessidade de autodefesa diante das ameaças da vida no deserto. Sua subsistência dependia da mobilidade de seus rebanhos e das relações comerciais estabelecidas com etnias de outras regiões. Às vezes, porém, tanto os beduínos como os sedentários não conseguiam sobreviver somente de suas atividades pastoris, comerciais ou agrícolas, e recorriam à pilhagem (ghazu) de aldeias, oásis e caravanas comerciais de etnias inimigas para poderem enfrentar, com o botim obtido, períodos de escassez de recursos naturais ou de crises comerciais. Apesar de moldados nesse meio hostil, os árabes pré-islâmicos, especialmente os beduínos, construíram um sistema de valores sociais baseados nas noções de honra, virilidade e generosidade. A honra tratava dos códigos culturais e jurídicos estabelecidos para evitar situações delitivas, como o furto, o homicídio ou a simples calúnia contra a família ou seus indivíduos. Se essas normas fossem rompidas, as sanções poderiam chegar até a pena de morte para o condenado, que geralmente se resolvia pelo pagamento de uma indenização ao ofendido ou à sua família. A virilidade e a generosidade assentavam-se sobre a proteção dos pobres, enfermos, anciãos e órfãos e sobre as virtudes do cavaleiro, que, além de saber montar para lutar e comerciar deveria ser hospitaleiro com os estrangeiros, cortês e culto. Às vezes, o cavaleiro-comerciante também reunia a inspiração da poesia oral, a principal fonte da história árabe pré-islâmica, que, como instrumento ideológico de controle social, exaltava a memória coletiva e ancestral das classes dominantes da etnia.

A ordem social árabe pré-islâmica, especialmente a sedentária, pautava-se pela hierarquização das relações sociais, em que a possibilidade de ascensão social era reduzida para quem não fosse cidadão de plenos direitos, isto é, que não pertencesse à relação “homem-nobre-livre”, superior à da “mulher-plebeu-escravo”. Embora homens e mulheres ocupassem funções sociais bem determinadas, em que não poderiam imiscuir-se nas responsabilidades uns dos outros, as relações patriarcais dominavam sobre as matriarcais. Portanto, ao chefe de família aristocrata (beduíno ou sedentário), era facultado possuir o número de esposas, concubinas e escravos que pudesse manter, na medida em que possuí-los e ostentá-los era sinal de riqueza pessoal e da etnia, requisitos para ser considerado “nobre” e, pois, cidadão pleno. Ao falarmos de escravismo nas sociedades árabes pré-islâmicas, devemos abandonar a idéia de que esse fosse um elemento preponderante das relações sociais de produção. O escravo, enquanto propriedade de seu senhor e força de trabalho doméstica e urbana, era uma forma secundária de exploração do excedente econômico, que se realizava principalmente pela taxação das relações comerciais. As atividades femininas restringiam-se ao ambiente doméstico, onde as mulheres, além de educarem os filhos e zelarem pela honra familiar, cultivavam lavouras e cuidavam dos rebanhos coletivos. Algumas também trabalhavam como pequenas comerciantes e artesãs locais, mas o comércio de longa distância das caravanas deve ter sido uma atividade quase exclusivamente masculina. A poligamia praticada pelos árabes pré-islâmicos atendia a um objetivo de autoproteção social contra a desagregação familiar e do grupo e também a um fim comercial. Diante dos riscos assumidos (morte, seqüestro, desaparecimento ou até fuga) com a participação masculina nas expedições comerciais, era dever do clã e da etnia cuidar da viúva, da mulher abandonada e de seus órfãos. Assim, permitia-se que outro homem (às vezes um parente) a desposasse e adotasse seus filhos. Por outro lado, a poligamia também possuía uma função econômica muito lucrativa, que aumentava o patrimônio e o prestígio individual e do clã, como no caso de mulheres de etnias inimigas cativas de guerra ou seqüestradas que eram vendidas nos mercados. Em épocas de crises econômicas, aliadas a altas taxas de natalidade feminina numa mesma família ou clã, era permitida a prática do infanticídio de algumas meninas.

Uma das poucas exceções à vida nômade era a formação de pequenas comunidades sedentárias em oásis ou cidades, como era o caso de Meca. Os beduínos nômades, enquanto pastores e comerciantes, constituíam um dos pólos (o do “mercador-guerreiro”) desse comércio itinerante de longa distância, levando e trazendo produtos para comprar e vender nas feiras e mercados urbanos, onde o segundo pólo dessa relação, o dos mercadores locais, predominava sobre a vida econômica e social sedentária dos grupos de camponeses e artesãos. Essa forma de organização e dominação das relações sociais de produção pelos comerciantes locais aristocratas dava-se através da extração do excedente econômico por meio da tributação da produção em forma de moeda, e não pela entrega de uma parte de tudo aquilo que se produzisse em sociedade (não se constituindo o modo de produção tributário árabe pré-islâmico num tipo de feudalismo europeu, como alguns estudos já afirmaram). Assim, para que essa relação sócio-econômica pudesse se justificar e perdurar, os senhores (sayyid) do comércio precisavam deter também o controle das relações de poder político e ideológico. A vida social e jurídica do clã ou da etnia, enquanto grupo, era regulada pelo costume, a “Sunnah” dos ancestrais, com base num precedente aceito como consenso geral e sancionado pela opinião pública. A fim de adotar-se uma decisão a respeito de disputas coletivas ou individuais, os chefes de cada família e clã eram indicados pelos seus membros para representá-los diante do conselho de anciãos (majlis), órgão deliberativo da etnia, cujas funções eram de natureza legislativa e jurisdicional. Porém, é claro que essa aristocracia comerciante impunha muitas vezes sua opinião e decidia as principais questões de seu interesse com base numa solidariedade de classe fundada na riqueza, na experiência comercial e no pertencimento aos clãs tidos como “superiores”.

Até inícios do século VII, os árabes do sul da península (sedentários na sua maioria) adoravam deuses e deusas que personificavam os planetas e aos quais consagravam templos e santuários controlados por sacerdotes que administravam as oferendas dadas às divindades. Nessa mesma época, os árabes beduínos do norte e do centro da Arábia não se preocupavam muito com rituais religiosos elaborados. Apenas acreditavam que a terra era habitada por espíritos invisíveis, os “jinns”, presentes nos elementos da natureza, como em árvores, fontes de água e pedras sagradas. Os “jinns”, devido às suas capacidades mágicas, eram tidos como responsáveis por acontecimentos milagrosos ou incomuns e por doenças, cujas causas popularmente acreditava-se ser o desequilíbrio entre o “jinn” interno e o externo de cada indivíduo, o que refletiria uma espécie de relação maniqueísta de separar o “bem” do “mal”. Já as populações sedentarizadas dos oásis praticavam uma religião politeísta através da veneração a vários deuses. Cada clã ou etnia possuía um ou mais deuses que poderiam ou não ter um correspondente nos demais grupos. Na região de Meca, as principais deusas eram Manat, Uzzah e al-Lat, adoradas através de estátuas de cerâmica de formato totêmico e antropomórfico, e filhas de Allah, um deus hierarquicamente superior aos demais, o que refletiria talvez o surgimento de um monoteísmo rudimentar pouco antes do início da era islâmica. Meca possuía um importante santuário, a Kaaba, local de peregrinação que abrigava a Pedra Preta (um meteorito) e mais de trezentas divindades de toda a Arábia. Assim, o clã dos Quraish, a elite aristocrática comerciante de Meca, respaldada pelo corpo de sacerdotes, controlava o uso ideológico dos rituais religiosos, organizando várias feiras ao longo do ano, a fim de atrair à região etnias de toda a península, e mesmo de fora dela, como forma de congregar as diversas rotas comerciais para um só local, onde supostamente haveria uma liberdade de culto e adoração de todas as divindades. Para entrar e negociar em Meca, ou simplesmente passar pelo seu território, cobravam-se impostos sobre o comércio e taxas alfandegárias. Além dos ritos politeístas, Meca e outras regiões da Arábia abrigavam comunidades de judeus e cristãos, formadas principalmente de camponeses e artesãos, que, especula-se, devem ter tido alguma influência sobre o incipiente monoteísmo árabe e as próprias origens e códigos do Islã.

Em fins do século VI, as formações sociais do Oriente Próximo encontravam-se em vias de transformação. Na Arábia, um mundo menos isolado do que se imaginava, as relações econômicas e de poder apontavam para tendências de unidade político-econômica e social, que Muhammad e seus partidários, ao abraçarem o Islã, tornariam numa nova realidade, cujas irreversíveis conseqüências refletiriam no legado histórico de toda a região e além.



[1] Denominação já usada por gregos e romanos, e corrente até a segunda guerra mundial, para referir a região asiática que vai do mar Mediterrâneo ao golfo Pérsico.


Adaptação de artigo publicado na revista "História Viva"- edição especial "Grandes Religiões n. 4: Islamismo", maio de 2007.